A saída de campo de Moussa Marega, jogador do FC Porto, este domingo (16/02/2020) no Vitória de Guimarães-FC Porto causou um tremor de terra no futebol português. Parece-me inteiramente justo que cause. O racismo no futebol é tão grave quanto o racismo no resto da vida e merece ser enfrentado de caras, discutido seriamente, evitado a todo o custo.
No entanto, nunca nada é tão simples quanto isto de se ver as coisas tal como elas são, ou como devem ser. Há sempre o outro lado da moeda. Logo nos momentos após a saída intempestiva de Marega do relvado no Estádio D. Afonso Henriques, vieram coisas diferentes daquelas que terão vindo das bancadas, mas tão perigosas quanto essas. Assim, de repente, li de imediato que o jogador tinha sido «fraco por não aguentar a pressão», por exemplo. Ou seja, insultos (racistas) = pressão? Essa equação parece-me problemática. Desde quando é que um adepto de futebol vai para um estádio mais para pressionar os jogadores adversários que para apoiar a sua equipa? Em Portugal, há já umas quantas décadas. Direi que ali nos anos 90 a coisa descambou. Mas já lá vamos.
No dia anterior ao grito de revolta de Marega, Dinis, um miúdo dos benjamins de futsal do Sporting viu um cartão branco (símbolo de 'fair play') por ter chamado a atenção do árbitro de que o adversário, no 'derby' com o Benfica, não tinha jogado a bola com a mão mas sim com a cara, o que significava que o Sporting não beneficiaria de uma grande penalidade. O vídeo retirado da emissão da Sporting TV foi partilhado de forma viral nas redes sociais e parece-me inteiramente justo que fosse. No entanto, lá pelo meio dos comentários positivos acerca da atitude do pequeno Dinis, li logo um outro que chamava de faccioso o narrador do jogo do canal que transmitia, porque em direto e no momento do lance disse que era lance para penalidade a favor do clube que dá nome ao canal. O lance foi tão rápido e tão imperceptível que o próprio árbitro, ali a poucos metros, também assinalou a penalidade, mas o narrador do jogo (que ou está num topo da bancada, ou a ver por um pequeno monitor) é faccioso por ter visto o que toda a gente pensou ver e que só o Dinis (e o adversário em lágrimas pela bolada na cara e pela injustiça da primeira decisão do árbitro) viram. A ação de Dinis só tem valor porque aconteceu e porque colocou justiça naquele momento. Mas só foi vista porque um canal de televisão (que acontece ser do clube do jogador Dinis) o transmitiu. E teve relevância porque o miúdo do Sporting clarificou o que nem o árbitro viu de imediato (tal como o narrador do jogo), ainda para mais num jogo contra o rival Benfica. Quantos o fariam e como seria a reação geral dos adeptos se um jogador da equipa sénior de futsal ou futebol de 11 fizesse isto num 'derby'? Não vale a pena responder. Você sabe a resposta. Eu também.
Uns dias antes do gesto de 'fair play' de Dinis, Fábio Martins, jogador do Famalicão, disse ter considerado que a sua equipa tinha sido superior ao Benfica na meia-final da Taça de Portugal. O Benfica apurou-se para a final, o Famalicão ficou pelo caminho, Fábio Martins deu a sua opinião (supostamente livre e a que tem direito) e foi vilipendiado por adeptos adversários nas redes sociais. E foi nas redes sociais que o jogador desabafou logo de seguida: «Somos homens que, depois de dar o litro no relvado, vamos para casa e não podemos ligar uma televisão, temos de afastar os computadores dos nossos filhos, para que eles não fiquem a pensar que o Pai matou alguém. Porque é isso que parece que transmitem, com as mensagens que escrevem.» Presumo que os adeptos contrários tenham pensado que Fábio também foi fraco e “não aguentou a pressão”, ao escrever um texto ponderado, com uma reflexão séria sobre o futebol português, do ponto de vista do atleta. Já agora, até nesse post, foi lembrada por adeptos do Benfica uma declaração (uma piadola que podia não ser excelente, mas não era insultuosa - a não ser aos olhos de adeptos como os que referi no final do parágrafo sobre Marega) de há dois anos, quando Fábio Martins jogava no SC Braga.
No mesmo jogo, curiosamente, o árbitro assistente Sérgio Jesus cerrou o punho de felicidade por o VAR ter dado como boa a decisão que ele próprio tinha tido em campo, no lance que acabou por validar um golo ao Famalicão. Acontece que a câmara da transmissão (RTP) estava a filmar o árbitro assistente no momento em que a decisão do VAR é conhecida. O gesto de festejo foi, obviamente, partilhado de forma viral com a narrativa de que Sérgio estaria a festejar o golo do Famalicão contra o Benfica (o subsequente chorrilho de insultos - e não só - é fácil de adivinhar). A vida de um árbitro - principal, assistente ou mesmo no VAR - é de tal forma complicada que qualquer pequena vitória (leia-se decisão que não dê aso a horas, dias, semanas, meses e por vezes até anos de discussão) é merecedora de um festejo de alívio. E esse, no ponto de vista dos adeptos, é merecedor de escárnio e insultos.
E isto... foi só em uma semana.
O futebol português é isto. Há muitos anos. Falo do que sei; fui jornalista de desporto dez anos consecutivos (99% do que se faz no jornalismo desportivo em Portugal é futebol) - tempo suficiente para ver de tudo: o bom ocasionalmente, o mediano semanalmente, o mau vezes sem conta e o péssimo em barda. Acho particularmente curiosa a hipocrisia vigente há décadas em torno do futebol português, que até forma grandes jogadores, mas tem um campeonato mediano e é promovido com uma narrativa que vive de quase tudo o que lhe é lateral e quase nada do que é um jogo bem jogado ou um golo tão bem marcado que poderia ser aplaudido pelos adeptos das duas equipas no estádio. (Ainda trabalho ocasionalmente com futebol, mas foi por opção que deixei a lide diária; não havia nada que me motivasse a continuar.)
Nas televisões onde este domingo se condenaram os insultos a Marega promovem-se os insultos em programas “da especialidade” todas as semanas (os momentos “quentes” são até os mais promovidos durante o resto da semana). Nos jornais em que se elogiou o gesto do pequeno Dinis no 'derby' de benjamins em futsal utilizam-se (sempre) expressões como duelo, batalha, luta, guerra, confronto (a mesma palavra que se usa para debates, mas também para atos de violência) para dizer simplesmente jogo, escreve-se conquista para vitória, descreve-se como quente, escaldante, tórrido o ambiente de um estádio (ou só a permanente troca de “galhardetes” verbais entre dirigentes e treinadores adversários). A rádio, de uma forma geral, vai sendo o mais imune dos meios de comunicação a estes fenómenos; não totalmente, mas bastante menos divisiva.
No “mundo real” do futebol português - onde ele acontece - há agressões costumeiras entre adeptos de claques, mas também a árbitros, a dirigentes, a jornalistas, a adeptos “anónimos” apanhados em confusões alheias junto a estádios e até dentro deles. Uma academia foi invadida por adeptos. Casos de polícia e tribunal com dirigentes e outros entes relacionados com futebol grassam por aí. Tudo gente de bem, que tem a seu cargo não só as equipas profissionais de futebol (atempada e comodamente colocadas em SAD’s com os menos nomes dos clubes, mas na prática independentes deles - para que o negócio pudesse ser maior… perdão… mais transparente), como centenas de atletas amadores, em várias modalidades (sempre atiradas para o “cesto” das “Modalidades” - como se não tivessem identidade própria, nem grande valor só por si), e acima de tudo em escalões de formação. Jovens e crianças para quem a “formação” passa por ter os exemplos dos mais velhos. E o que, logo de pequenino, se aprende dos mais velhos (até dos pais que vão ver os treinos e jogos, quanto mais dos representantes adultos das equipas seniores) é que o jogo tem de ser para ganhar e que a melhor maneira de ganhar uma bola (ou um lugar no 11 inicial) pode não ser jogando melhor, mas sim ceifando um jogador de forma mais eficaz. Do que se diz/escreve nas fossas sépticas online nem falo - até porque, obviamente, ao escrever este texto posso ser acusado de contribuir com um pouco mais de matéria para o esgoto, mesmo que a intenção seja exatamente a contrária.
Ali mais acima escrevi que tenho ideia de que tudo descambou nos anos 90. Não tenho a certeza se foi aí, mas é aí que eu me lembro de ter percebido a mudança de comportamentos. As claques começaram a ser mais visíveis ao mesmo tempo que foram diminuindo os cachecóis presos nas janelas dos carros que eu ia ver passar no cruzamento de entrada na Estrada Nacional 1 em Condeixa. Carros que iam a caminho de Lisboa ou do Porto em dias de clássicos envolvendo Benfica, Porto ou Sporting, quando a A1 ainda não estava terminada - daí a necessidade de tantos carros com adeptos passarem por ali. As pessoas viajavam pelo país, orgulhosamente com o cachecol preso pelo vidro a adejar ao vento do lado de fora do carro; seguiam felizes, via-se, e os adeptos com cachecóis semelhantes apitavam em festa, até adeptos rivais apitavam de forma festiva. Nos anos 90 comecei a saber de carros apedrejados no caminho, consoante o cachecol que ostentavam. Nos anos 90 soube da morte de um adepto nas bancadas do Estádio Nacional num “derby” na Final da Taça de Portugal. Nos anos 90 soube de outros dois adeptos que morreram com a queda de um varandim quando uma claque quis insultar a equipa adversária à chegada de um clássico. As coisas terão começado antes, claro, mas foi aqui que para mim o futebol começou a tornar-se nisto que é hoje. (E, não. Não me esqueço que ao início dos anos 90 Portugal já era visto como um expoente máximo do futebol do futuro (com os dois títulos mundiais de sub-20. Como hoje é Campeão da Europa e não há muitos anos foi semi-finalista num mundial.)
Espero (muito) estar errado, mas sinceramente não vejo este episódio com Marega fazer grande mossa no status quo do futebol português. Digo isto porque aqui e ali episódios traumáticos vaticinaram um toque a reunir, uma reflexão profunda e melhorias no ar que se respira dentro e fora dos estádios. A morte de Fehér, por exemplo. Pouco tempo depois do simbolismo de um velório em que todos se uniram por igual na dor, voltou tudo ao normal. E este é só um exemplo.
Repito, espero estar errado, porque há mais do que isto no futebol (e no desporto) português - com tanta alegria ainda para dar a tanta gente. Mas, tendo (semanalmente e todos os anos) semanas tão cheias de “nada de bom” como a semana que passou, nem o futebol português parece querer ser melhor, nem os consumidores do futebol português (que sistematicamente pactuam com o que veem e ouvem, opinando em conformidade) parecem querer ter algo melhor.
Antes que me seja apontada aquela velha questão de “criticas muito e não dás soluções”, digo que - caso isso tenha passado despercebido - já apontei para a solução que proponho.
É preciso que tanto o futebol português queira ser melhor (e não me cabe a mim dizer a quem faz o futebol aquilo que sabe exatamente que tem de fazer), como é preciso que o consumidor do futebol português queira ter algo melhor, mesmo que algo melhor seja outra coisa qualquer que não o futebol (tal como está).