quarta-feira, março 23, 2016

A minha (inquantificável) verdadeira ambição: ser o melhor pai possível

    As empresas, nas avaliações periódicas de desempenho dos seus funcionários, têm sempre uma alínea em que atribuem um valor (sim, quantitativo - de 1 a 5, de 1 a 10, ou entre 'x' e 'y' - os algarismos podem variar) àquilo que denominam a "ambição" do trabalhador.
    Na verdade, o que quase sempre consideram "ambição" é a disponibilidade do funcionário para fazer mais horas que aquelas que o contrato estipula. Isso, alegadamente, (e sei-o porque já mo foi dito muitas vezes) mostra quanto o trabalhador ambiciona "subir na carreira".
    Confesso que embarquei nessa ideia de que seria melhor naquilo que faço/fazia se o fizesse em GRANDE quantidade. Talvez tenha aparentado que fiz o meu melhor quando trabalhei que nem um louco - sempre pelo mesmo salário e nunca, já agora, sem qualquer "subida na carreira" ou promoção efectiva. Mas fui considerado "fantástico", "enorme!", "exemplar".
    Este desempenho alegadamente "ambicioso" da minha parte coincidiu com o nascimento de um canal de televisão da minha empresa e, esse nascimento coincidiu com o nascimento (meses depois) da minha filha, que praticamente não vi deitar durante os três primeiros anos da vida, porque chegava sempre a casa para lá das 22:00 (muitas vezes, mais tarde – muitas vezes até já de madrugada; muitas vezes depois de ter entrado ao serviço às primeiras horas da manhã).
    Percebendo que algo estava errado na minha alegada "ambição", pedi para mudar de horários e chegou a ser-me dito, por um dos mais altos responsáveis do meu departamento na empresa, que, se era por causa da minha filha, ela cresceria bem mesmo que eu não estivesse lá para a deitar todas as noites (ipsis verbis). Se tinha a intenção de mudar de vida, a partir dali tive a certeza. E mudei. Deixei, naturalmente, de ser considerado "fantástico", "enorme!", "exemplar" e, muito menos, “ambicioso”.
    As empresas – falo assim, no abstracto, porque há pessoas dentro das empresas que não pensam necessariamente pela bitola das instituições para as quais trabalham – consideram sistematicamente que, por exemplo, fazer muitos turnos nocturnos ou estar disponível para alternar de turnos sempre que convém à empresa é sinal de “ambição”, quando, na verdade, é apenas sinal de que as pessoas estão em péssima posição (financeira, sobretudo) para dizer que não – ou seja, correndo o risco de se tornarem “dispensáveis” à primeira “restruturação” (que quase sempre significa despedimento de funcionários). Mais, as empresas confundem horas e horários de trabalho com produtividade. Quanto ao primeiro caso, tenho a dizer que em todos os sítios onde trabalhei sempre conheci pessoas que lá estavam as mesmas horas que eu (e até mais horas do que eu - quando fiz part-time) e produziam menos. No segundo caso, as empresas nem percebem que há funcionários que simplesmente não têm o mesmo rendimento em todos os turnos... só porque são humanos (o ser humano, por regra, não tem a mesma acuidade mental 24 horas por dia), e que ao insistir colocar determinado funcionário num horário em que não se sente bem, e em que, por consequência, não produz tanto ou tão bem, se estão a prejudicar a si mesmas. Sim, as empresas prejudicam-se mais a si ao insistir neste erro. Mas insistem. Por vezes, sistematicamente, até que o funcionário mete "baixa", se demite ou é demitido (porque se tornou "dispensável").
    Mas, pronto. Eu decidi como decidi e, fiquei algo surpreendido quando boa parte das pessoas que estranharam (e até criticaram) a minha opção na altura, curiosamente, mudou de atitude na sua própria vida profissional com o nascimento dos seus filhos. Acho isso extremamente positivo – tirando a parte em que podiam, antes disso, ter guardado as pedras nos bolsos sem as atirar, porque telhados de vidro, um dia, todos temos. Não consegui “subir na carreira” – que estagnou – mas sou hoje um pai extremamente mais feliz por ter garantido maior controlo do ‘ratio’ trabalhador-pai.



    Ouvi o treinador Quinito – a sofrer de uma profunda depressão após a morte em 2009 do filho de 30 anos, que diz não ter conhecido por trabalhar demasiado toda a vida – e confesso que suspirei de alívio. Por uma só razão. Por não ter aquela amargura na minha voz. Se sofri de depressão já depois de ter pedido e feito mudança nos meus horários? Sim. Porque percebi, como já disse, que a carreira estagnou e não conseguia entender por que razão teria de ser alegadamente "melhor profissional" apenas estando disponível para fazer vários turnos diferentes na empresa. Melhorei dessa condição com terapia, mas o que garantiu reais e significativas melhoras foi, em definitivo, eu ter feito as pazes com a minha opção profissional.
    Hoje, que estou mesmo fora da minha profissão (numa licença sem vencimento) e a ponderar o que se segue na minha “tal” carreira (que pode ser e pode não ser um regresso ao meu emprego), sei que fiz bem (quando toda a gente dizia que estava a fazer mal) e espero continuar a fazer bem a parte de tudo tentar para ser simultaneamente um bom pai e um bom trabalhador, mesmo que nunca mais venha a ser considerado "fantástico", "enorme!", "exemplar".
    No entanto, na verdade, (e ao contrário do que me disseram a partir de 2012) sempre me considerei ambicioso. Tenho a ambição – que não quantifico, porque penso que não haja uma medida numérica que faça justiça a isso – de fazer coisas muito boas, se possível sempre inovadoras, mas sobretudo de alta qualidade; não forçosamente em grande quantidade e definitivamente não em prejuízo da vida pessoal.
    Hoje mesmo, a minha filha, meio adoentada, ficou comigo em casa e fez dois desenhos: um de uma (e cito) «maquineta de fazer bonecos e bonecas» e uma «máquina de fazer taças de comer sopa.»



 [http://paidanoticias.blogspot.pt]

    Estou feliz porque presenciei aquele pequeno-grande momento de divertida genialidade da Benedita. E ainda mais feliz estou por só muito raramente não presenciar o momento em que ela se deita para dormir. A minha verdadeira ambição maior – que também não quantificarei nunca – é ser o melhor pai possível e, se possível, que ela sinta orgulho do profissional que serei enquanto ela crescer. E quando crescer a ponto de já não ser a menina do pai que lhe deu a mão em pequenina, espero não me arrepender daqueles três anos em que lhe dei tão poucos beijos de boa noite.




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