sexta-feira, junho 05, 2020

WrestleMania & BolaMania

Há já muitos (muitos!) anos que a WWE descobriu que a melhor forma de atrair audiências para os pseudocombates de luta que organizava era criar storylines (narrativas) de pseudorivalidades entre os vários lutadores (muitos deles, maiores rivais no ringue e melhores amigos na vida real). «Eu vou desfazer-te no ringue porque tu andas a dizer isto e aquilo sobre mim!...» é mais ou menos a base das intrigas criadas em torno desse pseudodesporto, fisicamente uma das práticas físicas mais exigentes do mundo, desportivamente uma das menos verdadeiras do planeta. O sucesso dessa estratégia é tal que o ponto mais alto de cada temporada, a "WrestleMania" é um êxito de audiências retumbante, ano após ano.

Dito isto...

Quem estiver surpreendido pelo que se passou no regresso do futebol em Portugal que levante o braço!

Ninguém?!... Sério?...

[Interlúdio]
Por acaso, não acredito - mesmo - que não haja uma alma ingénua algures neste país que neste momento coce a cabeça em estupefação e pense naquela frase muito batida por repórteres que noticiam homicídios de violência ocorridos após vários anos de muito sabidas discussões e agressões entre os elementos da família em causa: «Nada fazia prever que...»; há sempre alguém que é como que apanhado na curva pelo óbvio. A ignorância é porreira enquanto dura, porque dá jeito, que mais não seja, para se ser feliz por mais uns minutinhos antes de a realidade dar conta de si. Por exemplo, eu próprio perco alguma jovialidade sempre que chega uma conta, de que não estava à espera, para pagar.
[Fim de interlúdio]

Para mim, era óbvio que o campeonato (com apenas um ponto de diferença entre FC Porto e SL Benfica aquando da paragem forçada) "teria" de regressar, mas também era óbvio que nada de fundamental (tirando a previsível ausência de público nas bancadas) iria mudar.

Num futebol de consumo interno assente em bases "WrestlingMania'nas", a storyline da intriga e da rivalidade visceral teria de vir à superfície. A verdade é que - como o azeite está para a água - também o "azeite" da bola vem sempre ao de cima. Sempre.

Ainda antes de tudo voltar à "normalidade", já o normal vinha acontecendo. Aos primeiros laivos (rumores, vá) de desconfinamento, já adeptos rivais andavam em "(re)encontros de convivência"que terminaram em hospitalizações e afins.

Ainda antes do campeonato regressar, já uma claque anunciava que, não podendo estar nas bancadas do estádio onde a equipa jogaria o primeiro encontro desta fase final da liga, iria para o exterior do complexo desportivo mostrar o apoio. (De pedir conselhos à DGS sobre essa ação até que as coisas corram exatamente "como previsto" com adeptos de futebol - diz a minha experiência de ais de uma década a lidar com o futebol português - vai um universo inteiro de distância.)

Ainda antes de a bola voltar a rolar, quem falou do regresso do "futebol de 1ª" português foi... (praticamente) toda a gente; menos quem joga futebol. Quando os jornais desportivos conseguiram voltar a dar notícias da liga, os jogadores - confinados pela Covid e amordaçados pelas estruturas diretivas que lhes pagam os salários - praticamente não aparecerem nas 1ªs páginas. E mais se falou de polémicas diretivas do que de expectativas desportivas para a ponta final da época.

Mal a bola voltou a rolar, voltaram também as críticas à arbitragem, os penáltis-que-deviam-ter-sido-marcados-e-não-foram, o nós(-em-campo)-contra-tudo-e-contra-todos(-fora-de-campo), as boçalidades que se escrevem nas redes sociais (e as que se dizem na televisão não tardarão a subir de tom) e, claro, as pedradas (que neste caso foram a um autocarro, mas que dantes foram... a outros autocarros; e a viaturas ligeiras; e a casas particulares; e a sedes locais de casas de clubes; e a locais de trabalho de árbitros...) e também as palavras ameaçadoras pintadas em casas, gritadas à beira de estradas, regurgitadas na internet.

Desde os anos 90  - mais ou menos, a mesma altura em que a WWE tomou a sua decisão de como promover o seu espetáculo/produto - que o futebol português de consumo interno (estou deliberadamente a deixar a Seleção fora disto - ainda que, recentemente, a clubite tenha por ali passado "de raspão" com um alegado apoio à "Equipa das Quinas" prestado por claques de clubes - e isso - surpresa! - não correu exatamente "como previsto") assumiu a postura de que a intriga, a polémica e a rivalidade visceral (e, acrescento, violenta) era o caminho de promover o seu espetáculo/produto.

OK. Era uma caminho possível.

A questão é que, sendo a mesma técnica utilizada pelo Wrestling profissional, o universo não é o mesmo, nem a realidade é a mesma. Porque a realidade nem conta no Wrestling. É tudo ficção. Inclusivamente a pancadaria. No futebol português não. Custe ou não a acreditar nisso, o futebol de bola na relva joga-se no mundo real, com causas e efeitos igualmente reais (e a pancadaria também é dura e penosamente real - por vezes, até mortalmente real). A parte do faz-de-conta surge só na cabeça daqueles que fazem de conta que está tudo bem, que tudo isto faz parte da coisa, que o futebol é bom é com este grau de emoção... e que é tão importante na vida das pessoas que a temporada tinha MESMO de ser completada, quando mais nenhum dos outros campeonatos da mesmíssima modalidade - inclusivamente, um outro campeonato profissional - viu a época ir até ao fim.






quinta-feira, março 12, 2020

Covid-19? Bom senso e canja de galinha*


2 x 500g de massa
2 latas de ervilhas
2 latas de feijão
6 latas de atum
6 litros de leite
3 pacotes de polpa de tomate
1 caixa de almôndegas
1 queijo
2 pães de forma
1 x 4 rolos de papel de cozinha
1 x 12 rolos de papel higiénico

Foi este o meu avio de supermercado de hoje. Em quase nada diferente do avio de um outro dia qualquer. Com base no que já havia em casa, trouxe o que poderia faltar nos próximos dias; que - espante-se! - é o que fazemos cá em casa em qualquer outra altura.

Há dias (nos finais de fevereiro), numa consulta de rotina com a pneumologista para avaliar a evolução da minha recém-contraída asma, deixei para o fim uma pergunta sobre o que já se vinha falando desde o início de janeiro: quais as precauções (se algumas) deveria ter - sendo asmático (e, por isso, entrando nos grupos de risco) - em relação ao Covid-19, para proteger-me e proteger quem contacta comigo? A médica, com base no meu tipo de asma (crónica, mas não grave) e sendo eu um indivíduo saudável de uma forma geral, disse-me que só teria de ter as precauções básicas, como grande parte da população.

Isso bastou-me para colocar como “fasquia” para mim mesmo as indicações dadas por que quem sabe do assunto. A mim e ao resto da população. Segui a minha vida e ainda hoje sigo a minha vida, tão normalmente quanto me seja possível, dadas as indicações se quem sabe do assunto para que nos mantenhamos cautelosos e menos socialmente ativos de momento. Vou onde tenho de ir, faço em casa todo o trabalho que seja possível fazer em casa, compro apenas aquilo que preciso de comprar.

Não me parece um plano complicado de cumprir.
E não acho que sou um exemplo para ninguém.
Simplesmente, estou a fazer aquilo que o (meu) bom senso manda.

Caso tenha sintomas que me levem a crer que possa ter de ser avaliado, pois que farei o que as autoridades me indicarem. O bom sendo - o meu, volto a sublinhar - também já me disse para proceder assim, adaptando o meu comportamento a uma nova circunstância, se algo do género acontecer.

E se as escolas fecharem e a minha filha tiver de ficar em casa, pois que a vida se adaptará também a esse detalhe. Estarmos prontos para adotar medidas excecionais em tempos excecionais faz parte. Ou, no mínimo, devia fazer.   

Percebo que os cenários apocalípticos que as histórias dos livros e dos filmes acerca de vírus nos fazem temer mexam connosco. Confesso que ontem até mexeram comigo. Fui à Staples comprar material para o escritório e dei comigo a olhar para os outros clientes da loja (que até estava pouco frequentada), a tentar ver se percebia neles alguns sinais de “doença”. Ao regressar ao carro apercebi-me de que o receio também é de certa forma uma maleita e decidi combatê-lo com os melhores remédios que me ocorreram naquele momento: auto-rádio e bom senso.


Virus that causes COVID-19


Estarmos bem informados é essencial, sermos cautelosos também, tal como é essencial - parece-me - pensarmos nisto como um possível tsunami que sabemos que pode vir e bater forte, mas que temos tempo de evitar, colocando-nos a todos em local seguro, ajudando quem precisa a chegar a esse lugar seguro.

Seria bom não sermos como aquelas pessoas que em dias de grandes incêndios vão “ver o fogo” e atrapalham quem luta para os apagar, ou quem sabe que é perigoso ir para junto da costa em dias de grande temporal e sai de casa precisamente para ir tirar fotos nos paredões e nos molhes, “abraçados” pelos enormes salpicos ondulação que bate nas rochas ali a meia dúzia de metros (se tanto). Tem-se visto muito desse tipo de comportamento por estes dias em que nos foi dito que o melhor é ter cuidado e evitar correr para o problema.

Mais uma vez, não acho que eu seja um exemplo para ninguém.
Mas o meu bom senso diz-me que estamos longe daquela cena estranha que se vê no filme “Twelve Monkeys” - precisamente sobre um vírus que mas boa parte da população mundial - em que os animais do zoo correm livremente pelas ruas da cidade. 





Decidi, portanto, adotar os procedimentos que as autoridades recomendam (e vierem a recomendar) e ainda outros mais que o bom senso me diga para juntar aos primeiros.

Mas… vá. Também não sou fundamentalista neste aspeto. Se, por mero acaso, me aperceber que andam girafas, cangurus ou um par de rinocerontes a passear por aí… poderei, eventualmente, rever a letra miudinha dos “termos e condições” do meu bom senso e chegar à conclusão de que não é lá grande coisa.

= = =

* Sim, eu sei que não mencionei a canja de galinha. Entenda, a canja ajudava a criar um título minimamente decente. E, de facto, até é um prato fácil de fazer e que se faz com pouca coisa, em caso de escassez de produtos no supermercado. Ah... e, como diz a expressão, não faz mal a ninguém. Embora - e bem - os médicos nos lembrem frequentemente que "canja não é sopa!" ("Sopa é com legumes. Ponto.")

segunda-feira, fevereiro 17, 2020

Marega, Dinis, Fábio, Sérgio…



A saída de campo de Moussa Marega, jogador do FC Porto, este domingo (16/02/2020) no Vitória de Guimarães-FC Porto causou um tremor de terra no futebol português. Parece-me inteiramente justo que cause. O racismo no futebol é tão grave quanto o racismo no resto da vida e merece ser enfrentado de caras, discutido seriamente, evitado a todo o custo.

No entanto, nunca nada é tão simples quanto isto de se ver as coisas tal como elas são, ou como devem ser. Há sempre o outro lado da moeda. Logo nos momentos após a saída intempestiva de Marega do relvado no Estádio D. Afonso Henriques, vieram coisas diferentes daquelas que terão vindo das bancadas, mas tão perigosas quanto essas. Assim, de repente, li de imediato que o jogador tinha sido «fraco por não aguentar a pressão», por exemplo. Ou seja, insultos (racistas) = pressão? Essa equação parece-me problemática. Desde quando é que um adepto de futebol vai para um estádio mais para pressionar os jogadores adversários que para apoiar a sua equipa? Em Portugal, há já umas quantas décadas. Direi que ali nos anos 90 a coisa descambou. Mas já lá vamos.

No dia anterior ao grito de revolta de Marega, Dinis, um miúdo dos benjamins de futsal do Sporting viu um cartão branco (símbolo de 'fair play') por ter chamado a atenção do árbitro de que o adversário, no 'derby' com o Benfica, não tinha jogado a bola com a mão mas sim com a cara, o que significava que o Sporting não beneficiaria de uma grande penalidade. O vídeo retirado da emissão da Sporting TV foi partilhado de forma viral nas redes sociais e parece-me inteiramente justo que fosse. No entanto, lá pelo meio dos comentários positivos acerca da atitude do pequeno Dinis, li logo um outro que chamava de faccioso o narrador do jogo do canal que transmitia, porque em direto e no momento do lance disse que era lance para penalidade a favor do clube que dá nome ao canal. O lance foi tão rápido e tão imperceptível que o próprio árbitro, ali a poucos metros, também assinalou a penalidade, mas o narrador do jogo (que ou está num topo da bancada, ou a ver por um pequeno monitor) é faccioso por ter visto o que toda a gente pensou ver e que só o Dinis (e o adversário em lágrimas pela bolada na cara e pela injustiça da primeira decisão do árbitro) viram. A ação de Dinis só tem valor porque aconteceu e porque colocou justiça naquele momento. Mas só foi vista porque um canal de televisão (que acontece ser do clube do jogador Dinis) o transmitiu. E teve relevância porque o miúdo do Sporting clarificou o que nem o árbitro viu de imediato (tal como o narrador do jogo), ainda para mais num jogo contra o rival Benfica. Quantos o fariam e como seria a reação geral dos adeptos se um jogador da equipa sénior de futsal ou futebol de 11 fizesse isto num 'derby'? Não vale a pena responder. Você sabe a resposta. Eu também.

Uns dias antes do gesto de 'fair play' de Dinis, Fábio Martins, jogador do Famalicão, disse ter considerado que a sua equipa tinha sido superior ao Benfica na meia-final da Taça de Portugal. O Benfica apurou-se para a final, o Famalicão ficou pelo caminho, Fábio Martins deu a sua opinião (supostamente livre e a que tem direito) e foi vilipendiado por adeptos adversários nas redes sociais. E foi nas redes sociais que o jogador desabafou logo de seguida: «Somos homens que, depois de dar o litro no relvado, vamos para casa e não podemos ligar uma televisão, temos de afastar os computadores dos nossos filhos, para que eles não fiquem a pensar que o Pai matou alguém. Porque é isso que parece que transmitem, com as mensagens que escrevem.» Presumo que os adeptos contrários tenham pensado que Fábio também foi fraco e “não aguentou a pressão”, ao escrever um texto ponderado, com uma reflexão séria sobre o futebol português, do ponto de vista do atleta. Já agora, até nesse post, foi lembrada por adeptos do Benfica uma declaração (uma piadola que podia não ser excelente, mas não era insultuosa - a não ser aos olhos de adeptos como os que referi no final do parágrafo sobre Marega) de há dois anos, quando Fábio Martins jogava no SC Braga. 

No mesmo jogo, curiosamente, o árbitro assistente Sérgio Jesus cerrou o punho de felicidade por o VAR ter dado como boa a decisão que ele próprio tinha tido em campo, no lance que acabou por validar um golo ao Famalicão. Acontece que a câmara da transmissão (RTP) estava a filmar o árbitro assistente no momento em que a decisão do VAR é conhecida. O gesto de festejo foi, obviamente, partilhado de forma viral com a narrativa de que Sérgio estaria a festejar o golo do Famalicão contra o Benfica (o subsequente chorrilho de insultos - e não só - é fácil de adivinhar). A vida de um árbitro - principal, assistente ou mesmo no VAR - é de tal forma complicada que qualquer pequena vitória (leia-se decisão que não dê aso a horas, dias, semanas, meses e por vezes até anos de discussão) é merecedora de um festejo de alívio. E esse, no ponto de vista dos adeptos, é merecedor de escárnio e insultos.

E isto... foi só em uma semana.

O futebol português é isto. Há muitos anos. Falo do que sei; fui jornalista de desporto dez anos consecutivos (99% do que se faz no jornalismo desportivo em Portugal é futebol) - tempo suficiente para ver de tudo: o bom ocasionalmente, o mediano semanalmente, o mau vezes sem conta e o péssimo em barda. Acho particularmente curiosa a hipocrisia vigente há décadas em torno do futebol português, que até forma grandes jogadores, mas tem um campeonato mediano e é promovido com uma narrativa que vive de quase tudo o que lhe é lateral e quase nada do que é um jogo bem jogado ou um golo tão bem marcado que poderia ser aplaudido pelos adeptos das duas equipas no estádio. (Ainda trabalho ocasionalmente com futebol, mas foi por opção que deixei a lide diária; não havia nada que me motivasse a continuar.)

Nas televisões onde este domingo se condenaram os insultos a Marega promovem-se os insultos em programas “da especialidade” todas as semanas (os momentos “quentes” são até os mais promovidos durante o resto da semana). Nos jornais em que se elogiou o gesto do pequeno Dinis no 'derby' de benjamins em futsal utilizam-se (sempre) expressões como duelo, batalha, luta, guerra, confronto (a mesma palavra que se usa para debates, mas também para atos de violência) para dizer simplesmente jogo, escreve-se conquista para vitória, descreve-se como quente, escaldante, tórrido o ambiente de um estádio (ou só a permanente troca de “galhardetes” verbais entre dirigentes e treinadores adversários). A rádio, de uma forma geral, vai sendo o mais imune dos meios de comunicação a estes fenómenos; não totalmente, mas bastante menos divisiva.

No “mundo real” do futebol português - onde ele acontece - há agressões costumeiras entre adeptos de claques, mas também a árbitros, a dirigentes, a jornalistas, a adeptos “anónimos” apanhados em confusões alheias junto a estádios e até dentro deles. Uma academia foi invadida por adeptos. Casos de polícia e tribunal com dirigentes e outros entes relacionados com futebol grassam por aí. Tudo gente de bem, que tem a seu cargo não só as equipas profissionais de futebol (atempada e comodamente colocadas em SAD’s com os menos nomes dos clubes, mas na prática independentes deles - para que o negócio pudesse ser maior… perdão… mais transparente), como centenas de atletas amadores, em várias modalidades (sempre atiradas para o “cesto” das “Modalidades” - como se não tivessem identidade própria, nem grande valor só por si), e acima de tudo em escalões de formação. Jovens e crianças para quem a “formação” passa por ter os exemplos dos mais velhos. E o que, logo de pequenino, se aprende dos mais velhos (até dos pais que vão ver os treinos e jogos, quanto mais dos representantes adultos das equipas seniores) é que o jogo tem de ser para ganhar e que a melhor maneira de ganhar uma bola (ou um lugar no 11 inicial) pode não ser jogando melhor, mas sim ceifando um jogador de forma mais eficaz. Do que se diz/escreve nas fossas sépticas online nem falo - até porque, obviamente, ao escrever este texto posso ser acusado de contribuir com um pouco mais de matéria para o esgoto, mesmo que a intenção seja exatamente a contrária.

Ali mais acima escrevi que tenho ideia de que tudo descambou nos anos 90. Não tenho a certeza se foi aí, mas é aí que eu me lembro de ter percebido a mudança de comportamentos. As claques começaram a ser mais visíveis ao mesmo tempo que foram diminuindo os cachecóis presos nas janelas dos carros que eu ia ver passar no cruzamento de entrada na Estrada Nacional 1 em Condeixa. Carros que iam a caminho de Lisboa ou do Porto em dias de clássicos envolvendo Benfica, Porto ou Sporting, quando a A1 ainda não estava terminada - daí a necessidade de tantos carros com adeptos passarem por ali. As pessoas viajavam pelo país, orgulhosamente com o cachecol preso pelo vidro a adejar ao vento do lado de fora do carro; seguiam felizes, via-se, e os adeptos com cachecóis semelhantes apitavam em festa, até adeptos rivais apitavam de forma festiva. Nos anos 90 comecei a saber de carros apedrejados no caminho, consoante o cachecol que ostentavam. Nos anos 90 soube da morte de um adepto nas bancadas do Estádio Nacional num “derby” na Final da Taça de Portugal. Nos anos 90 soube de outros dois adeptos que morreram com a queda de um varandim quando uma claque quis insultar a equipa adversária à chegada de um clássico. As coisas terão começado antes, claro, mas foi aqui que para mim o futebol começou a tornar-se nisto que é hoje. (E, não. Não me esqueço que ao início dos anos 90 Portugal já era visto como um expoente máximo do futebol do futuro (com os dois títulos mundiais de sub-20. Como hoje é Campeão da Europa e não há muitos anos foi semi-finalista num mundial.) 

Espero (muito) estar errado, mas sinceramente não vejo este episódio com Marega fazer grande mossa no status quo do futebol português. Digo isto porque aqui e ali episódios traumáticos vaticinaram um toque a reunir, uma reflexão profunda e melhorias no ar que se respira dentro e fora dos estádios. A morte de Fehér, por exemplo. Pouco tempo depois do simbolismo de um velório em que todos se uniram por igual na dor, voltou tudo ao normal. E este é só um exemplo.

Repito, espero estar errado, porque há mais do que isto no futebol (e no desporto) português - com tanta alegria ainda para dar a tanta gente. Mas, tendo (semanalmente e todos os anos) semanas tão cheias de “nada de bom” como a semana que passou, nem o futebol português parece querer ser melhor, nem os consumidores do futebol português (que sistematicamente pactuam com o que veem e ouvem, opinando em conformidade) parecem querer ter algo melhor.

Antes que me seja apontada aquela velha questão de “criticas muito e não dás soluções”, digo que - caso isso tenha passado despercebido - já apontei para a solução que proponho.

É preciso que tanto o futebol português queira ser melhor (e não me cabe a mim dizer a quem faz o futebol aquilo que sabe exatamente que tem de fazer), como é preciso que o consumidor do futebol português queira ter algo melhor, mesmo que algo melhor seja outra coisa qualquer que não o futebol (tal como está).