quarta-feira, março 09, 2016

Sr. Presidente*

Terminado o almoço, levanta-se da mesa, sai da sala, caminha uns passos e puxa do bolso das calças do fato cinza escuro o velho telemóvel que pouco usa. Olha para o visor e, mesmo antes de entrar no gabinete, pára, vira-se para trás e estica o braço, passando o aparelho a quem mais perto está.

-Faça-me um favor... Desliga-me isto? A minha mulher é que sabe mexer nestas coisas... Obrigado...

Volta a colocar o velho telemóvel – já desligado – no bolso e dirige-se finalmente para a secretária, impecavelmente arrumada, onde tem apenas uma base em pele, castanha e reluzente, duas canetas douradas e um pequeno teclado de computador, sem fios. Volta atrás uns passos porque faz questão de ser ele mesmo a fechar ambas as portas do gabinete – anormalmente grande e luxuoso para ser um simples gabinete. Portas que se abrem logo a seguir, ainda antes de se sentar à secretária.

- Posso?...

Faz-se um curto silêncio. Despe o casaco, que coloca nas costas da cadeira. Senta-se, por fim. Aproxima a cadeira da secretária e estica ambos os braços em simultâneo para a frente (naquele movimento que permite que as mangas da camisa se ajustem aos braços, para escrever mais à vontade).

- Pode, pode. Vou precisar de si daqui a pouco. Sente- se ali. Já falamos um bocadinho. Tenho umas ideias para alinhavar.

As portas voltam a fechar-se para mais ninguém entrar no gabinete até ser noite. Puxa de duas folhas “A4′′, lisas, da primeira gaveta à direita na secretária. Dobra-as ao meio, em “A5′′, pega numa das canetas douradas e começa a escrever.

- Não seria melhor escrever já a computador...?

A resposta não surge de imediato. Faz-se novo silêncio. Longo, agora. Ele continua a escrever, ponto por ponto, como quem faz uma lista de tarefas ou de compras.

- Não... Não... Oriento-me melhor assim, sabe. Mas deixe-me alinhavar isto, se faz favor. Já falamos um bocadinho. Está prometido. Vou precisar de si daqui a pouco.»

Passa uma hora... passam duas... três... e os dois ali sentados, em silêncio, cada um no seu lado do gabinete. Só um faz alguma coisa. Escreve. O outro aguarda, de mãos juntas, quase como quem reza; com os dois indicadores esticados, a servir de suporte, tanto ao queixo, como ao lábio inferior ou até à ponta do nariz, alternadamente. Passam mais uma hora nisto. Até que alguém bate à porta.


- Posso?...

- Não. Diga lá.


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A nega causa espanto tanto à funcionária como ao vígil companheiro das últimas quatro horas.

- O telefone está farto de tocar. Querem todos falar consigo...
- Diga-lhes que não vale a pena. Estamos aqui os dois a alinhavar isto.

Levanta-se uma sobrancelha do outro lado do gabinete.

- E até nós dois já somos uma multidão.
- Mas já estão a ligar até para o telemóvel da sua esposa...
- Ah... Com isso não se preocupe... Ela dá conta do recado. Olhe... trazia-nos um chá?... Obrigado.

Volta a pôr os olhos nas folhas dobradas, muito escrevinhadas, onde continua a acrescentar pontos e mais pontos. Ao fim de mais meia hora de silêncio sepulcral, decide falar, ao mesmo tempo que estende o braço para passar as folhas ao fiel adido.

- Ponha-me isto num Word, sim? Tem de ser rapidinho, que já falta pouco e não tarda chega toda a gente. Obrigado pela ajuda que me deu esta tarde.

Ao pegar nas folhas, o adido primeiro levanta uma sobrancelha... depois as duas... e finalmente reúne coragem para perguntar:

- Tem mesmo a certeza que é isto que quer dizer?!...

E, no fim de perguntar, percebe de imediato que vai ouvir aquela resposta já dezenas de vezes ouvida, sempre em alturas chave.

- Eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas. Lembra-se?

Lá está ela, a resposta. Resta-lhe “passar a limpo” o que tem naquelas duas folhas e oito páginas de rascunho.. Sai do gabinete para só lá voltar quinze minutos depois.

Quando regressa, com quatro folhas “A4′′ na mão, já o chefe não está no gabinete, mas sim numa pequena sala ao lado, a ser maquilhado por uma jovem muito jovem (e bonita!) que vai balbuciando algo sobre ser «uma emoção estar a pôr-lhe um pozinho!». Ele estica a mão por debaixo de um tecido (que acaba de aprender que se chama penteador), pega o novo enunciado e passa-lhe uma vista de olhos.

- Sim, é mesmo isto que eu quero dizer. Obrigado pelo pozinho, menina.

E volta para o gabinete, unicamente para se imobilizar junto às portas principais, que se abrem exactamente trinta segundos depois de se ter lá colocado, a ouvir o burburinho de gente a falar e de toques de telemóvel e de cliques e de flashes, que subitamente aumentam (todos!) de volume, num frenesi de som e luz que só amaina quando já está frente a cerca de umas trinta pessoas e de um pequeno palanque.

E, chegado ali, fala...


[Ilustração: Lucy Pepper]



Minutos depois, despede-se e sai, de novo para o gabinete, apenas para pousar as quatro folhas “A4′′ na secretária, maculando por momentos a impecável arrumação do móvel.

- Arquiva-me isto no sítio habitual, por favor? Mas antes tire umas fotocópias, que vamos precisar delas pela manhã. Obrigado. Vou-me deitar.

E vai.
Ao entrar no quarto, senta-se na cama, a olhar para a janela.

- Sabes que vais ter problemas, não sabes?... Acreditas que me ligaram todos?... Nunca me tinha acontecido! Não assim, pelo menos... Eles não sabiam de nada, mesmo?... Nenhum deles?!... O teu telefone está avariado?...
- Não. Importas-te que me deite só assim um bocadinho, ainda vestido? Já visto o pijama. Só quero descansar os olhos.. Desligas a luz por uns minutos, por favor?... Obrigado. Desliga o teu telefone também. Eles vão querer ligar toda a noite. Já dei ordem para ninguém anotar mensagens sequer. Amanhã trato deles... perdão... trato disso.

Ela desliga a luz. Ele fica sozinho no quarto, no escuro.

- Raramente tenho dúvidas... - respira fundo - ... nunca me engano...


Adormece.
Até de manhã.

Será o seu 2681º dia em funções.





* Publicado originalmente na revista online "Papel", em 2013.  Republicado posteriormente, em 2015, no livro "Sem princípio, meio, ou fim."

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